quinta-feira, 8 de outubro de 2009

LEI DE (AUTO)ANISTIA E IMPUNIDADE: OBSTÁCULOS NORMATIVOS E SOCIAIS A UMA EFETIVA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

No Brasil, já há alguns anos vem-se discutindo questões como a legitimidade da Lei de Anistia de 79 (lei nº 6.683), se os crimes da ditadura estão prescritos, se a lei pode retroagir para punir tais fatos, se as indenizações pecuniárias são suficientes para reparar as vítimas e seus familiares, entre outras questões polêmicas e acaloradas.

Quando ouvi a afirmação de Monstesquieu “...que se examinem a causa de todos os abusos: ver-se-á que eles derivam da impunidade dos crimes e não da moderação das penas...”, imediatamente me veio à mente o caso da abertura dos arquivos da ditadura, no Brasil e em toda a América Latina.

Não vou adentrar o tortuoso mérito daquelas questões, pois são de tamanha complexidade, que um único texto não comportaria uma discussão adequada de todas elas. Contudo, não posso deixar de refletir sobre o que mais me chama a atenção em todo este debate: a complexa relação existente entre mencionada lei, impunidade e a repetição de atrocidades.

Quando questionados sobre a abertura dos arquivos da ditadura, perpetradores e seus defensores alegam que o Brasil é “um país pacífico” e que as “feridas estão cicatrizadas”. Afirmam que os fatos ocorridos naquele período devem ser deixados para trás e que revirá-los agora traria apenas dor e pesar aos familiares e vítimas. Para eles, a Lei de Anistia de 79 e o pagamento de indenizações pecuniárias são suficientes para reparar os danos e dores padecidos.

Entretanto, se esse de fato fosse o posicionamento de vítimas e familiares, certamente não se veriam tantos movimentos e tentativas de divulgar os fatos e a causa, como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Há anos essas pessoas lutam para que se proceda à devida investigação e punição de crimes como tortura, execução sumária, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver.

Infelizmente, uma grande parcela da sociedade brasileira não tem conhecimento da gravidade do que ocorreu no período da Ditadura Militar, tampouco da crueldade utilizada para combater a oposição política e popular ao Regime.

Ocorre que, os reflexos da ausência de investigação e punição dos fatos e criminosos vão muito além da esfera individual. Os interesses em jogo são de toda a sociedade.

A Lei de (auto)Anistia está intimamente ligada à impunidade, uma vez que funciona como obstáculo material e processual à investigação e sanção dos perpetradores.

Na suposta intenção de obter uma solução amistosa, a lei em questão cria no ordenamento interno barreiras ao cumprimento de obrigações internacionais básicas do Estado. Ademais, a lei nº 6.6683/79 não apenas impede o efetivo direito à verdade, ferindo diretamente preceitos de direitos humanos, como também representa, por si, uma violação ao dever do Estado de não sancionar leis garantidoras e perpetuadoras da impunidade de atos contra a humanidade.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos vem reiteradamente manifestando-se sobre as leis de anistia de diversos países latino-americanos, e recentemente admitiu o caso brasileiro da Guerrilha do Araguaia. A posição da Corte é clara: são inadmissíveis quaisquer tentativas de impedir a investigação, persecução e sanção dos responsáveis por atos violadores dos preceitos básicos do direito internacional dos direitos humanos.

No caso Barrios Altos Vs. Perú, em voto separado, o então juiz da Corte Interamericana Cançado Trindade asseverou que a impunidade tem como conseqüência o desgaste da confiança nas instituições públicas e que, por isso, qualquer lei de (auto)anistia é desprovida de legitimidade para o direito internacional.

O jurista brasileiro enfatizou ainda, que essas leis afetam o “mínimo universalmente reconhecido”, como os direitos à vida e à integridade pessoal, adentrando assim o domínio do jus cogens.

Por fim, deve-se ter em conta não apenas a finalidade punitiva da pena, como também seu caráter pedagógico e inibitório. A responsabilização, cível e criminal, dos perpetradores tem como principal conseqüência o desestimulo à repetição de práticas hediondas.

A ditadura militar é uma triste página de nossa história, a qual queremos que fique para trás e que nunca mais se repita. Contudo, deixar no passado não significa o completo esquecimento e ignorância dos fatos.

O direito à verdade e o direito à memória pressupõem a abertura total dos arquivos da ditadura, com o consequente conhecimento, por toda a sociedade, das atrocidades nela cometidas e dos algozes por essas responsáveis.  

Esses direitos são requisitos essenciais ao combate à impunidade. Garantí-los significa assegurar uma sociedade livre, justa e, acima de tudo, consciente dos trágicos fatos que por longos e  angustiantes anos acometeram-na.  
O que se tem hoje é um quadro de flagrantes violações aos direitos humanos, individual e coletivamente considerados. A Lei de Anistia impede a concretização do direito à verdade e à memória, sem os quais não se pode falar em efetiva Justiça de Transição. Ao Estado brasileiro cabe a extirpação dessa mácula da sociedade, removendo mais um obstáculo à Democracia real e definitiva, no nosso país e em toda a América Latina.